
Ninguém o odiara.
- Arthur Vecchi
- 28 de mai. de 2023
- 3 min de leitura
Odiado por todos e detestado por muitos: assim contava para si mesmo, isolado em seu diário mental. Nele revia o rosto desengraçado de Clarinha, cujos cravos saltavam-lhe da cara. Nem era feia, mas Diógenes em seu cárcere, surpreendia-se com a imagem daqueles pontinhos pretos, aumentando e explodindo em sua tela mental. Ria-se...
Dizia para si:
- E o Julio da gaita¹? É a cara dele todinho: pele espinhenta, toda inflamada, olhos verdes esbugalhados e a boca de sacola.
A faculdade era mal frequentada, pensava:
- As pessoas não me ajudam; essa gorda comendo um brigadeiro às 7h da manhã!? Decidido: alface com ovo cozido até o final do curso. Vejamos se não toma jeito.
Ao que tudo indica, ninguém passava batido: aos bonitos eram atribuídos defeitos de caráter, não havendo físico. As meninas eram interesseiras e os rapazes, burros... o leitor sabe como é...
Em conversa com seu melhor amigo, via-se franzino e pálido. Julgava transmitir uma imagem arrogante, e até mesmo, nojenta. Tudo isso o impossibilitava de erguer o olhar ao passar por alguém.
Por vezes, até pensava em vencer-se:
- Preciso resistir: amanhã passo pelo Augusto e olho-o de igual. Posso muito bem fazê-lo. Em quê sou diferente? Está decidido. Amanhã.
Augusto era o atleta do time de medicina: corpo grego, pele lisa e rosada. Maxilar protuberante, queixo avantajado... não precisa mais do que isso para descrever Diógenes: o oposto.
No dia seguinte, de longe avistava Diógenes, a escultura de Michelangelo – que para o seu desespero, andava.
Posicionou-se de frente, na mesma calçada: coluna ereta e queixo erguido – pela primeira vez – e foi.
Augusto, que sequer sabia de sua existência, vinha conversando com uma garota. Diógenes cerrou os punhos, prendeu a respiração e aproximando-se... abaixou a cabeça. Uma leve trombada o derrubou no canteiro de flores. Rapidamente levantou-se e saiu batendo roupa, imaginando que todos fitavam-no com graça. Ninguém reparou.
A insignificância percebida consubstanciava-se com a covardia recém descoberta, brotando um sentimento de ódio e vingança contra o airoso Augusto.
Essas memórias o amargaram, moldando seu comportamento por anos: mágoa pelo menor motivo (muitas vezes sem motivo), melancolia e solidão. Em paralelo julgava-se mais inteligente e perspicaz. Um ditador em potência.
Mas, o diligente leitor, já deve ter experimentado momentos na vida, onde o céu se abre e nos é dada alguma revelação; digo, revelação, pois o conhecimento de todas as coisas se encontra em posse do Criador.
Tempos idos.
Numa manhã fedentina, de ônibus lotado, Diógenes debruçava-se sobre uma obra dostoiévskiana: “Memórias do subsolo”. Ria, concordava e vilipendiava o personagem - coisas que o autor russo consegue nos proporcionar apenas com a vida de um personagem.
Eis que, seu viciado epitélio olfatório capta um maravilhoso perfume: uma linda mulher situara-se bem de frente. Afoito para dar início à investigação, levantou a cabeça e posicionou o livro na frente dos olhos. Vez por outra, abaixava um pouquinho e ia medindo a moça, cuidando para que não deixasse perceber, ao passo que ia conferindo cada linha, cada curva... o volume, comprimento e o brilho dos cabelos lhe eram peculiar, digo: fabuloso. Tudo parecia-lhe da melhor forma, afinal, nem ela nem ninguém reparara em seu empenho desbravador.
Sem motivo, a bem-proporcionada virou o rosto, dando dois passos em direção oposta. Bem sabes o leitor, a que velocidade deslocam-se os neurotransmissores.
Num ímpeto de vingança, Diógenes virou-se igualmente, ficando de costas e emanando as mais belas frequências de raiva, chegando até a encontrar defeitos, veja você.
Em menos de minuto, o ônibus para; a porta se abre e a mulher apenas desce. Apenas, desce.
Aquele mesmo ímpeto que o havia virado, agora o enterrara na vergonha: pela primeira vez, o céu abriu-se-lhe. A musa não estava rejeitando-o, nem transmitindo alguma mensagem subliminar. De fato, ela sequer o notara. Ela apenas desceria no próximo ponto.
E tudo aquilo foi se desenrolando como deixado de presente por alguém, ao passo que Diógenes recordava todas as suas reações adolescentes ao longo da vida.
Ninguém o odiara.
1 Personagem do programa: "Cócóricó", na tv Cultura.
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