Admirável Mundo Novo e a Música "Índios": o dilema de John na voz de Renato Russo.
- Carolini Melo
- 30 de mai.
- 6 min de leitura
Atualizado: 10 de jun.
Por muito tempo, cantei a música “Índios” sem me convencer de que fosse uma crítica à colonização portuguesa, como todo mundo pensa. Sempre achei que havia algo a mais ali. Essa música traz alma, dor e sutilezas demais para caber apenas em uma justificativa histórica.
Essa impressão confusa, que me acompanhava sem nome ou forma, encontrou significado depois que li o livro Admirável Mundo Novo. Desde então (mais precisamente desde 2020) venho matutando essa ideia e só recentemente tive a ideia de escrever esta crônica, na tentativa de dar forma a algo que só existe dentro da minha cabeça, mas que, ainda assim, faz total sentido. rs
Pra mim, Índios é uma belíssima expressão da voz do Selvagem em Admirável Mundo Novo. Renato Russo, com sua sensibilidade poética, parece ter traduzido, em música, o drama existencial vivido por John. É como se a letra ecoasse, quase que de forma literal, o percurso do personagem.
Essa leitura da música “Índios” à luz de Admirável Mundo Novo pode parecer inusitada à primeira vista, mas faz todo sentido quando se observa com atenção o que ela expressa em cada verso e estrofe. A música fala de alguém que foi arrancado de si, que sofreu com a perda de tudo em que acreditava e que tentou resistir até o fim. Exatamente como John.
John é retirado de seu mundo, onde ainda se acredita em Deus e em valores espirituais, e lançado numa sociedade artificial que rejeita a dor, o amor verdadeiro e qualquer noção de transcendência. Ele é convidado a sair da “Reserva” onde morava sob a promessa de acolhimento e amizade por parte de Bernard e Lenina. No entanto, sua saída é marcada por um engano sutil, já que ele acredita estar sendo aceito como pessoa, quando na verdade está sendo levado como curiosidade exótica e como um instrumento a serviço de interesses sociais e pessoais do próprio Bernard.
Ao chegar à tão sonhada “civilização”/”Novo mundo”, John se depara com uma sociedade que não se assemelha em nada ao que ele imaginava.
Guiado por uma visão mais profunda da vida (formada pela criação recebida da mãe e pelas leituras de literatura clássica), ele acreditava que, naquele novo mundo, encontraria uma civilização ainda mais refinada nos valores que já carregava. Esperava um lugar onde o sentido da vida fosse mais claro. Onde a beleza fosse mais verdadeira. Onde a dor tivesse um propósito. Onde o amor fosse mais inteiro. Onde Deus, enfim, não fosse negado, mas compreendido em sua plenitude. Um lugar onde ele encontrasse correspondência com tudo aquilo que existia dentro dele.
No entanto, ele acaba encontrando uma sociedade entorpecida pelo SOMA, guiada pela lógica do prazer imediato, da estabilidade social a qualquer custo e da negação do sofrimento. Nesse mundo, o sexo é vazio, o amor é ridicularizado, a fé é inexistente, e a cultura foi reduzida à repetição condicionada de frases e comportamentos pré-fabricados. Uma sociedade em que a própria humanidade parece ter sido sacrificada em nome de uma paz superficial.
John, então, sente-se perdido, traído, como se tivesse sido arrancado de um mundo duro, mas autêntico, para ser jogado em um cenário fabricado. Seu incomodo não vem apenas do choque cultural, mas da constatação de que seus valores mais profundos não têm lugar naquele admirável mundo novo. A ilusão que o havia feito partir, alimentada pelas palavras aparentemente gentis de Bernard e Lenina, se dissolve rapidamente, dando lugar a uma profunda angústia existencial e ao sentimento absoluto de não pertencimento.
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Quem me dera, ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem
Conseguiu me convencer que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha
Quem me dera, ao menos uma vez
Explicar o que ninguém consegue entender
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente
Quem me dera, ao menos uma vez
Provar que quem tem mais do que precisa ter
Quase sempre se convence que não tem o bastante
E fala demais por não ter nada a dizer
Quem me dera, ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto como o mais importante
Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente
Após uma intensa e reveladora conversa com Mustafá Mond, um dos homens mais poderosos daquele mundo, responsável por manter a ordem e os princípios que sustentam a sociedade, John entende, enfim, que aquela sociedade não é apenas vazia de sentido, mas é irremediavelmente corrompida.
No diálogo, que mais parece um embate filosófico entre duas visões de mundo, Mustafá defende os princípios que sustentam o “admirável mundo novo” como a supressão da dor, da fé, da arte e da liberdade individual em nome da estabilidade e da felicidade coletiva. John, por sua vez, insiste em defender o valor do sofrimento, do amor verdadeiro, da espiritualidade, da liberdade moral e principalmente da fé em Deus. Valores que para ele são essenciais à dignidade humana.
Ao compreender que suas crenças não tinham espaço naquele mundo, John decide se afastar. Em silêncio, ele vai embora e se refugia em um farol isolado, distante da cidade, na tentativa de viver em silêncio, longe daquela realidade que o sufocou e corrompeu tudo o que para ele era sagrado.
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Quem me dera, ao menos uma vez
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês
É só maldade então, deixar um Deus tão triste?
Quem me dera, ao menos uma vez
Acreditar por um instante em tudo que existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes
Quem me dera, ao menos uma vez
Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos obrigado
No farol, John tenta viver de forma pura e solitária, entregando-se a um modo de vida marcado por práticas rigorosas e religiosas, com o objetivo de se purificar da culpa e da contaminação moral que sentia por ter cedido, ainda que brevemente, aos valores dessa sociedade doente.
No entanto, sua tentativa de isolamento é invadida, literalmente, por aquilo que ele tentava deixar para trás. Câmeras, drones, repórteres e curiosos começaram a cercar o farol. A civilização, entorpecida pelo espetáculo e insensível à dor, transforma seu retiro em um circo. Ele é filmado, ridicularizado, tratado como atração exótica. O ápice da profanação ocorre quando uma multidão invade o espaço, impulsionada por música e muita euforia, e o força a reviver, em transe coletivo, um trauma não resolvido com Lenina. Ali, sob aplausos e olhos vazios, John não apenas se vê exposto, mas violentado espiritualmente.
🎵Quem me dera, ao menos uma vez
Como a mais bela tribo, dos mais belos índios
Não ser atacado por ser inocente
O dia passa e, na manhã seguinte, já não resta em John nenhuma força para continuar. Devastado pela culpa, pela vergonha e pela certeza de ter profanado a própria identidade, ele toma uma decisão silenciosa e definitiva: renunciar à própria vida.
Não há drama, nem violência. Apenas um corpo suspenso no farol, diante de um mundo que nunca o acolheu de verdade. Como se, naquele silêncio final, ele buscasse reencontrar aquilo que sempre carregou dentro de si e que a sociedade, o tempo todo, tentou apagar. Seu sofrimento extremo foi uma tentativa desesperada de preservar o sentido da própria existência, os seus valores, a verdade que carregava e o Deus que nunca deixou de buscar.
E é justamente nesse momento que acontece a conexão final entre a música e o drama do Selvagem.
Para John, restou-lhe apenas a fé de que, mesmo sem jamais tê-lo visto plenamente, havia alguém que o compreendia do início ao fim. Sua partida não foi um caminho até Deus, mas um grito final de quem não suportou mais viver num mundo onde Ele havia sido apagado.
🎵Eu quis o perigo e até sangrei sozinho, entenda
Assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim
E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi...
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