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Dom Casmurro não é sobre Traição

  • Foto do escritor: Carolini Melo
    Carolini Melo
  • 24 de mai. de 2023
  • 7 min de leitura

Atualizado: há 5 dias

A suposta traição de Capitu NÃO IMPORTA e neste artigo eu conto o porquê.


Advertência inicial: Para não criar um viés de interpretação, recomendo que você leia a obra antes deste artigo. Assim, você poderá aproveitar ao máximo a experiência única que o livro te proporcionará ao dialogar com as características mais profundas de sua personalidade.


Preciso também dizer, antes de mais nada, que este artigo não retrata uma tese filosófica comprovada, mas sim uma interpretação particular de acordo com minhas percepções. Aliás, esta é a grande charada do livro: cada pessoa irá interpretá-lo de forma diferente a depender da bagagem de vida e repertório construído. Por isso, acredito que Dom Casmurro é o tipo de obra que deve ser revisitada ao longo da vida, pois poderemos perceber detalhes que passaram despercebidos em leituras anteriores.


Vamos à análise:


Não acho que Machado de Assis, em sua mais célebre obra, tenha desejado apenas descrever um drama sobre traição para entreter o leitor com a ideia de Capitu traindo, ou não, Bentinho.


Assim como toda excelente literatura, a trama principal – bem elaborada - serve como uma espécie de alegoria para ilustrar sua verdadeira questão filosófica. Por isso, a genialidade de Dom Casmurro encontra-se no protagonismo de Bentinho e não na possibilidade de uma relação entre Capitu e Escobar. Como diz aquele ditado: quando Pedro fala de Paulo, sei mais de Pedro do que de Paulo.


Fica muito evidente que o grande objetivo do livro é nos fazer perceber as características da personalidade de Bento Santiago. Parece que Machado de Assis criou o personagem Bentinho para nos alertar sobre a falta de conhecimento que temos de nós mesmos ou, mais especificamente, a nossa dificuldade em reconhecer as influências que o AUTOENGANO e os sentimentos de CIÚMES, CULPA e ORGULHO exercem sobre nossas vidas.


E por que eu acho isso?

Para começar, repare no significado interessante de CASMURRO.


CASMURRO: indivíduo fechado em si mesmo; ensimesmado, sorumbático. Teimoso, obstinado, cabeçudo; que não desiste facilmente de; que expressa obstinação; que se fecha em si mesmo, em seus próprios pensamentos.


Logo na primeira página já identificamos a intenção de Bento Santiago:


“Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que lhes dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo”. (Capítulo I)


Ele não queria que tivéssemos nossa opinião, mas sim que víssemos as coisas como ele as enxergava, inclusive a forma como imaginava a si próprio. Eis aí o grande alerta para entendermos o que vem a seguir.


Se você analisar como os relatos são dispostos em cada capítulo, cada referência, cada anedota, e a forma como cada um dos fatos contados se antecedem, você perceberá que há uma perfeita correlação, quase que calculista, com intuito de conduzir os olhos e pensamento do leitor para aquilo que o escritor – BENTO SANTIAGO - deseja que seja percebido. Isso é muito interessante, pois a prosa é tão intrigante e nos conduz de forma tão automática que, dificilmente, percebemos o quanto estamos sendo influenciados a enxergar algo pelas lentes de Bentinho, sem reparar no poder de convencimento que alguém pode exercer sobre nós quando nos priva do outro lado da história.


No decorrer da narrativa, vai ficando claro que a decisão de escrever o livro não parte de uma motivação despretensiosa do Velho Bento, que naquela altura da vida já estava sozinho, tendo perdido todos que amava, em especial, o melhor amigo, a esposa (único e verdadeiro amor) e o filho tão desejado. Na verdade, parece ter sido a única forma que ele encontrou para tentar entender o que foi a própria vida e quem ele era, em última instância, com o objetivo de dar sentido às paranoias que direcionaram suas escolhas e determinaram o rumo de sua vida. Para o leitor mais atento, é como perceber no personagem aquele sentimento de que a conta finalmente chegou:


“O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui.” (capítulo II)


O protagonista escreve cada capítulo na esperança da confirmação e do acalento da própria consciência que grita. Ao fazê-lo, ele acaba também por convencer o próprio leitor.

Entretanto, se não nos deixarmos cair no automatismo da prosa e da forma como Bentinho guia nossa percepção, e avaliarmos friamente a proposta de tudo que foi escrito, perceberemos o seguinte:


1- Por não conseguir admitir a responsabilidade e o fardo de suas más escolhas, a grande maioria dos capítulos dedicados à Capitu têm por objetivo principal retratar as suspeitas sobre o caráter da moça e colocá-lo em xeque. Dessa forma, ele faz com que o leitor enxergue a Capitu que ele quer confirmar ao recontar a própria história, propósito comprovado em seu desabafo no último capítulo:


“O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos... se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.”


2- Por ser obcecado por Capitu, Bento acreditava que o sentimento de Capitu por ele não era suficiente e não poderia ser comparado ao que ele tinha por ela. O protagonista deixa isso explícito em vários capítulos, como por exemplo:


“A notícia de que ela vivia alegre, quando eu chorava todas as noites, produziu-me aquele efeito, acompanhado de um bater de coração, tão violento, que ainda agora cuido ouvi-lo. (Capítulo LXII)


3- Por outro lado, em todos os capítulos dedicados a Escobar, as lembranças eram sempre com intuito de exaltar as admiráveis características físicas e traços da personalidade do amigo, traços que muitas vezes deixava Bentinho mais do que maravilhado, como alguém que desejava tê-los para si.


Custa me esta confissão, mas não posso suprimi-la... achei-os mais grossos e fortes (braços) que os meus, e tive-lhes inveja; acresce que sabiam nadar." (Capítulo CXVIII)


4- A todo momento Dom Casmurro relembra de fatos que vão criando vieses de pensamento, desde os mais grosseiros até os mais sutis:


“Mas veja bem mano Cosme, veja se não é a figura do meu defunto. Sempre achei que te parecias com ele, agora é muito mais” (Capítulo XCIX)


Obs: De tantas memórias que poderiam vir à tona, Bentinho lembra enfaticamente dessa fala de sua mãe? Justo a que reforça a ideia de um filho ser sempre parecido com o pai?


Disse-lhe que começava a achar minha mãe um tanto fria e arredia com ela (Capitu)... tenho notado que já é fria também com Ezequiel.” (Capítulo CXV)


Obs: Entre tantas dúvidas que existiam na cabeça de Bento, ele foi mencionar exatamente essa que pode induzir o leitor a pensar que talvez sua mãe tivesse cismado com a nora e o neto?



5- Vários capítulos mostram também que Bentinho tinha o hábito de ficar procurando pelo em ovo, ou seja, em seus desabafos percebemos o quão inquieto e inseguro ele parecia estar na relação com Capitu, sempre criando dramas que não existiam:


“Separados um do outro pelo espaço e pelo destino, o mal aparecia-me agora, não só possível, mas certo. E a alegria de Capitu confirmava a suspeita; se ela vivia alegre é que já namorava outro.” (Capítulo LXII)


“...tudo me mostrou que a causa da impaciência de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também.” (Capítulo CII)


“Salvo o desgosto grande de não ter um filho, tudo corria bem... eu um dia dissesse a Escobar que lastimava não ter um filho.” (Capítulo CIV)



6- Por fim, todos os capítulos que antecedem as crises de ciúmes de Bentinho, nos denunciam algo: elas sempre começam imediatamente após a percepção do protagonista sobre os próprios pensamentos. O exemplo mais significativo é o episódio do aperto de mãos entre ele e Sancha (amiga de Capitu esposa de Escobar). Os sentimentos de pecado, culpa e remorso, abrem espaço para o pensamento estopim do grande drama de sua história. Sabe aquela máxima de medir o outro pela própria régua? Parece que Bento ficava tão atormentado com os próprios pensamentos que julgava em Capitu a concretização deles.


Depois de ler vários capítulos como esses, para os mais desatentos, é impossível não pensar em algo que fica tão evidente: Como pode, com tantos traços suspeitos da personalidade de Capitu e a proximidade e intimidade de Escobar, um homem tão admirável, não ter acontecido mesmo uma traição?


Provavelmente era esse o pensamento que atormentava Bento!

Um pensamento que lhe custou a própria vida.


O personagem de Machado de Assis perdeu todas as pessoas que mais amava por causa da incapacidade de admitir seu autoengano e perceber as influências que os sentimentos de ciúmes, orgulho e culpa exerciam sobre suas escolhas. Ao ser confrontado pela própria consciência, que tentava fazê-lo enxergar o que havia perdido, tratou de criar uma forma de resistir à verdade. Decidiu escrever um livro para confirmar a teoria de sua própria desgraça.

Fê-lo com tanta maestria que, ao final de suas palavras, nessa espécie de diário íntimo, não fica tão clara a denúncia universal: há pessoas que preferem ser firmes às próprias histórias e paranoias a correr o risco de demolir seus castelos de ilusões e confrontar a realidade.

Por mais cômico que possa parecer, a história narrada por Bento Santiago é finalizada com chave de ouro, ao dar sentido poético à frase final do soneto jamais concluído:


Perde-se a vida, ganha-se a batalha.

(A batalha de Bento era contra a própria consciência)



BÔNUS:


Depois de ler este artigo, recomendo um exercício: desenterre seu livro, tire a poeira e releia os capítulos CXLV (O regresso) e CXLVI (Não houve Lepra). Tendo em vista as características de Bento Santiago, aqui denunciadas, talvez você perceba a grandiosidade de Machado de Assis.


Achou esta análise interessante?

Saiba que isso não nem o mínimo da grandiosidade da literatura.

Confira o artigo “Por que Literatura” e entenda a sua mais profunda importância.


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